Juízes brancos, presos negros: o que é encarceramento em massa? É racista?

O Brasil só fica atrás de China e Estados Unidos no ranking de número absoluto de pessoas encarceradas no mundo. Os dados são de 2021 e foram divulgados pelo Monitor da Violência, grupo de estudo comandado pelo Núcleo de Estudos da Violência da USP e pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública.

Para piorar, a já dramática situação carcerária do Brasil, houve uma piora após a pandemia do novo coronavírus. De acordo com o Anuário Brasileiro de Segurança Pública, divulgado em junho deste ano, 820.689 vidas tiveram a liberdade cerceada pela Justiça, neste período, um aumento de 8,15% em relação a 2020.

O alto número de cidadãos presos pelo Estado tem um nome: encarceramento em massa. Ele nos revela problemas crônicos da sociedade brasileira, como um sistema de justiça criminal falho e, principalmente, estruturalmente racista.

O que é encarceramento em massa?

“Encarceramento em massa é o nome de um processo que faz com que muitas pessoas sejam aprisionadas, muitas vezes por crimes sem violência em presídios e prisões mundo afora”, analisa Pablo Nunes, coordenador do Centro de Estudo de Segurança e Cidadania. “Tanto no Brasil quanto nos Estados Unidos e em outros países que estão no topo do ranking de população carcerária no mundo, a maioria das pessoas presas é negra.”

“No Brasil, ainda tem um problema adicional: a maioria delas são presas sem condenação, ou seja, estão presas temporariamente e seguem às vezes anos a fio sem liberdade”, complementa Nunes. Uma pesquisa realizada pela Iniciativa Negra por uma Nova Política sobre Drogas em 2021 mostrou que 34,7% da população carcerária brasileira não foi julgada.

O que é encarceramento em massa?

No livro “Encarceramento em massa” (Editora Jandaíra, 2019), a pesquisadora e escritora Juliana Borges descreve o problema a partir do ponto de vista histórico, associando-o diretamente ao racismo. De acordo com ela, há uma ligação entre as prisões em massa da população negra no Brasil e o antigo sistema escravocrata.

“Abolida a escravidão no país, como prática legalizada de hierarquização racial e social, vemos outros mecanismos e aparatos constituindo-se e reorganizando, ou até mesmo sendo fundados, caso que veremos da instituição criminal, como forma de garantir controle social”, escreve a pesquisadora.

Borges lembra que a primeira Lei Criminal no Brasil foi instituída em 1830, quando a escravidão era vigente no Brasil. Desde aquela época, segundo a estudiosa, negros recebem um tratamento diferente da lei. Naqueles anos de Brasil Império, eles eram tratados, nas palavras da escritora, como “coisas”. Pertencentes aos brancos, eles costumavam sofrer punições não da Justiça, mas dos seus donos, em âmbito privado.

O livro mostra que o tratamento diferenciado se manteve após mesmo Abolição da Escravatura, em 1888. “A abolição da escravatura foi inconclusa. A sociedade brasileira, controlada exclusivamente por pessoas brancas à época, se organizou para a construção de uma estrutura legal que separa os grupos com o objetivo velado de manutenção de uma ideia de superioridade racial da população branca. A estrutura é o sistema de justiça criminal”, explica Joel Luiz Costa, advogado e coordenador executivo do Instituto de Defesa da População Negra.

Borges descreve o “encarceramento em massa” como um sistema que garante o controle social da população, mantendo uma hierarquia racial que coloca os brancos acima dos negros. A análise se sustenta em dados concretos: o Anuário de Segurança Pública mostra que, em 2011, 60,3% da população encarcerada era negra e 36,6% branca; em 2021, a proporção foi para 67,5% de presos negros para 29,0% de brancos.

Qual o impacto da Lei de Drogas no encarceramento em massa?

Estudiosos de segurança pública não hesitam ao dizer que a Lei de Drogas 11.343, aprovada em 2006 pelo governo Luiz Inácio Lula da Silva, agravou o problema do encarceramento em massa no Brasil. Tida na época como progressista pela tentativa de diferenciar usuários dos traficantes, a lei acabou sendo usada como instrumento racista por forças de segurança.

O problema da lei está no critério subjetivo das prisões. Diz o artigo 28: “para determinar se a droga destinava-se a consumo pessoal, o juiz atenderá à natureza e à quantidade da substância apreendida, ao local e às condições em que se desenvolveu a ação, às circunstâncias sociais e pessoais, bem como à conduta e aos antecedente”. Ou seja, na prática, os policiais e juízes definem quem é usuário e traficante.

“Os integrantes [do sistema de justiça criminal] não refletem a população brasileira: são majoritariamente brancos e homens. Os casos de pessoas que são colocadas em prisão por roubarem Miojo ou pedaços de carne ilustram bem o problema”, complementa Pablo Nunes.

Em 2021, o Anuário Brasileiro de Segurança Pública informou que, desde a aprovação da lei 11.343, a população carcerária aumentou em 254% no Brasil – muito por causa dos crimes relacionados a drogas, que apresentaram um crescimento de 156%. Para Joel Luiz Costa, as prisões são diretamente influenciadas pelo racismo:

“Quem é traficante neste país? O traficante tem uma figura exata no imaginário das pessoas: ele tem cor, classe, CEP e vestuário. Ele é um jovem negro, periférico, de 20 anos, com roupa esporte e boné. Esse é o bandido para a população brasileira.”, analisa.

Existem soluções para o encarceramento em massa?

O Anuário de Segurança Pública abordou também uma questão chave para entender o problema do encarceramento em massa: a falta de oportunidades para os egressos. Na lógica brasileira, o investimento em prisões é tradicionalmente muito maior que o dinheiro gasto na recuperação dos detentos.

Um bom exemplo é o estado de São Paulo. Uns dos poucos a oferecer programa de apoio a egressos, os paulistas destinam R$ 1 aos antigos presidiários para cada R$ 504 gastos com penitenciárias e R$ 1.795 com polícias.

Para Joel Luiz Costa, a população negra também é a que mais sofre após o cárcere. Para ele, o país não irá resolver o problema enquanto o povo negro seguir excluído dos espaços de poder, como os cargos de ciência, empresariado, da academia e as cadeiras do Legislativo e Executivo.

“Os negros ainda enfrentam um terceiro problema, além do cárcere e das dificuldades como egressos: a criminalização indireta. É o caso do menino negro que está passando na rua e faz alguém fechar o vidro do carro ou mudar a bolsa de braço. Tudo isso é consequência desse sistema punitivo que, quando não encarcera, exclui ou estigmatiza os negros”, finaliza Pinheiro.

Matéria publicada originalmente pelo site ECOA Uol. Imagem: Getty Images/EyeEm


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