A cor da injustiça: negros são a maioria dos presos injustamente
As fotos que encarceram, geralmente, são aquelas nas quais jovens negros surgem como protagonistas. Um levantamento feito pela Defensoria Pública do Rio juntamente com o Colégio Nacional de Defensores Públicos Gerais (Condege) mostra que em oito anos foram feitas 90 prisões injustas baseadas no reconhecimento por fotos, sendo 73 no Rio. Destas, 81% são acusados negros e a ampla maioria eram suspeitos de roubos.
O cenário é comprovado pela Comissão de Defesa dos Direitos Humanos da Assembleia Legislativa do Rio (Alerj) que só no último dia 13 entregou moção honrosa a 11 pessoas presas de maneira injusta e a familiares daquelas que ainda dependem da Justiça para comprovar inocência.
É o caso do jovem Jeferson Pereira da Silva, de 30 anos, que em setembro do ano passado viveu a rotina do cárcere por seis dias numa cela com 80 homens considerados criminosos pelo Judiciário.
Entre réus julgados, 95,9% são homens e 63,74%, negros, somando-se pretos e partos segundo a definição do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE)
O rapaz, morador do Morro São João, no Engenho Novo, Zona Norte do Rio, foi acusado em 2019 de ter cometido o crime de roubo e acabou preso mesmo sem provas.
“Um dia eu estava andando de moto aí eu fui abordado pelo Méier Presente. Consultando o meu nome lá, os policiais disseram que eu tinha uma passagem por 157 [roubo]. Aí eu fiquei espantado na hora. Falei: ‘Como assim, se eu nunca fui preso, nunca tive passagem nenhuma?”, relembrou o diálogo com o policiais.
Ao ENFOCO, Jeferson se recorda de ter ido à 25ª DP (Engenho Novo) para prestar depoimento. Na ocasião, ele foi liberado. Mas o pior viria dois anos depois.
“Na mesma hora eu fui na delegacia, prestei depoimento e ficou tudo bem. Aí o delegado me liberou. Eu fui no fórum, procurei saber se tinha algum processo, não tinha nenhum. Aí eu fiquei tranquilo, não corri mais atrás. No ano passado eu fui preso por causa desse assalto que eu não cometi”, recordou.
Segundo o rapaz, uma possível vítima o reconheceu através de uma foto 3×4 de quando ele ainda era adolescente.
“Foi através de uma foto de quando eu tinha 14 anos. Fui na delegacia, prestei depoimento certinho e inclusive eles não anexaram meu depoimento no processo. Isso me complicou mais ainda e eu acabei sendo preso”.
Momentos de horror
O rapaz conta que uma cama era dividida por quatro detentos na hora de dormir no presídio de Benfica. Como se não bastasse, as investidas de insetos e o local insalubre viravam tormento ao jovem. Ele foi liberado da prisão no dia 13 de setembro de 2021.
“É uma sensação horrível. Eu não comia, eu mal bebia água, comia um pão. A noite era muito percevejo que saía dos colchões e me mordia. A gente não conseguia dormir. Era aquele tormento. Eu só pensava na minha família a todo tempo. Eu chorei muito, foi bem difícil”, lembra.
Injustiça
Eliane de Oliveira Campos, 53 anos, é mãe de Jorge Luiz, de 29. Ela ainda luta para tirar o filho de trás das grades. Jorge foi preso no dia 15 de fevereiro de 2022. Ele foi sentenciado a cinco anos e dez meses de prisão por acusações de roubo com uma moto em Itaboraí. Acontece que ele não sabe andar com o veículo.
“Meu filho fez oito cirurgias no cérebro e trocou oito válvulas, passou oito anos dentro de uma UTI; não tem coordenação motora, ele tem uma distrofia no nervo ótico. Nós, ditos normais, temos 100% da visão. Ele só tem 20% da visão. Meu filho não tem capacidade alguma de guiar uma moto de São Gonçalo até Itaboraí pra ter feito esse assalto. O juiz negligenciou todos os laudos”, lamenta.
Dentro do período de quase três meses, Jorge já passou por cinco presídios, segundo a mãe, que afirma ainda que o filho foi reconhecido por vítimas através de foto na 71ª DP (Itaboraí).
“Ele apanhou, teve sarna, dormiu no chão, ele tem uma válvula no cérebro. Pra mim, fica muito difícil falar como mãe, né? Porque ele é inocente. O meu filho é inocente. Ele não tem coordenação motora pra guiar uma moto e fazer um assalto no que foi imputado a ele”, ressalta.
A identificação, ainda segundo Eliane, foi feita em audiência por meio de videoconferência, já com Jorge preso.
“Começou tudo errado já pela Polícia Civil que mandou a foto do meu filho para as vítimas, que disseram: ‘foi esse’. E foi por vídeoconferência, não foi nem ‘tete a tete’. Meu filho dentro da delegacia e eles [vítimas] por videoconferência falaram que foi meu filho. Óbvio que iam falar que foi o meu filho, já tinham visto a foto dele na delegacia. E meu filho estava em casa. Não tem condições. Meu filho nunca andou de velotrol, porque ele não tem coordenação motora. Como que ele ia fazer um assalto majorado?”.
Comprovação
No reconhecimento, a vítima ou testemunha identifica a pessoa que acredita ser autora do crime através do registro fotográfico. A foto pode ser apresentada em um “álbum de suspeitos” existente nas delegacias, ou até mesmo ser extraída de redes sociais.
O método vem sendo questionado por diversos atores do sistema de justiça, como é o caso da advogada criminalista Juliana Sanches, representante do Instituto de Defesa da População Negra (IDPN).
Ela cita à reportagem estudo de 2014, elaborado pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada – Ipea, que apontou casos de até 20 anos de prisão provisória, em situações de reconhecimento fotográfico equivocado.
“Tem presos que ficam 12 anos, tinham casos de 20 anos de presos provisoriamente sem que houvesse uma condenação definitiva. E o pior: ao final eles eram absolvidos. Essa pesquisa da Defensoria, que obviamente é mais recente, fala ali que na maioria dos casos eles passavam até 1 ano e 2 meses presos, pra depois o Estado não se responsabilizar por isso. Pessoas que em regra são primárias, bons antecedentes, que não têm razão nenhuma pra aquela fotografia estar ali”, conta.
Estudo que o ENFOCO teve acesso revela o tempo médio perdido nas prisões do Rio por quem teve sua vida impactada por erros no uso do reconhecimento fotográfico em delegacias do estado chega a 14 meses.
Dos 242 processos analisados pela Defensoria Pública do Rio os réus foram absolvidos em 30% dos casos. Entre eles, mais de 80% (54 pessoas) tiveram as prisões preventivas decretadas e há quem tenha passado quase seis anos encarcerado preventivamente até a absolvição.
O produtor cultural Ângelo Gustavo Pereira Nobre, o Guga Nobre, solto em agosto de 2021 – após um ano de prisão injusta baseada em reconhecimento fotográfico, falou aliviado à reportagem, no último dia 13, ao receber a Medalha Tiradentes, no plenário da Assembleia Legislativa do Rio.
“Eu sempre venho me posicionando a ajudar as outras pessoas que estão passando e vêm passando o que eu passei. Espero que nenhum outro jovem possa passar o que eu passei, que nenhuma outra mãe possa sofrer o que a minha sofreu”, conta.
Ele ficou preso sob a acusação de fazer parte de uma quadrilha que roubou um motorista no Catete, Zona Sul do Rio. O crime ocorreu em agosto de 2014.
De acordo com informações do processo, a própria vítima do roubo realizou pesquisa em redes sociais e reconheceu Ângelo por fotografia, cerca de três meses após o crime.
Guga diz que a luta contra a injustiça deve continuar.
“A luta continua. Me sinto, com certeza, honrado em receber uma das maiores honrarias do Rio de Janeiro aqui na Alerj diante de tantos amigos incríveis, de tantos outros jovens que passaram a mesma situação que eu passei. Não é sobre a medalha. É mais sobre a luta mesmo, pela causa”.
Na decisão da desembargadora Maria Angélica Guerra Guedes, antes da ‘descoberta’ feita pela vítima, Ângelo Gustavo foi indiciado como sendo o outro roubador, sem que qualquer outra diligência tivesse sido feita pela autoridade policial.
“A má condução no processo de obtenção da prova testemunhal pode gerar a formação de falsas memórias. Uma prova eivada de vícios desta natureza pode resultar em sérias violações aos princípios constitucionais e processuais, bem como resultar em condenações de inocentes”, disse Maria.
Segundo o Tribunal de Justiça do Rio, a magistrada destacou a comprovação, nos autos do processo, de que o produtor cultural enfrentava um problema de saúde, pouco tempo antes do crime, inclusive tendo passado por intervenções cirúrgicas.
Ainda de acordo com o TJ, a desembargadora Maria também relembrou que, no dia dos fatos, foi celebrada uma missa em homenagem a morte de um dos melhores amigos de Ângelo. A família alega que ele estava na Igreja no momento do roubo.
“A ninguém interessa a condenação de um inocente, afinal, quando deixamos que um cidadão cumpra pena por um crime que não cometeu, somos forçados a reconhecer que o sistema de justiça falhou. Impossível conceber um Estado Democrático de Direito que não tenha o bem comum como pressuposto e, ao mesmo tempo, objetivo. Privar um cidadão inocente de sua liberdade sem dúvida atenta contra o bem comum, e fere a segurança jurídica, conquanto legítima injustiça”, considerou Maria Angélica.
Famosos participaram da campanha para libertar Guga Nobre. Entre os quais, os atores Jonathan Azevedo, Jonathan Haagensen, Jeniffer Nascimento, Marcello Melo Jr., Raphael Logan, Babu Santana e Rafael Zulu.; os cantores Preta Gil, Thiaguinho, L7 e Djonga; e a filósofa Djamila Ribeiro.
Consequências
A deputada Dani Monteiro (Psol), presidente da Comissão de Defesa dos Direitos Humanos, alertou sobre as consequências no âmbito social e econômico dos envolvidos.
“Podemos apontar a perda de emprego, perda de receita de renda, porque muitas vezes as pessoas são responsáveis pelo sustento da família. Perda, especialmente, da humanidade desses sujeitos. A média deles ficam um ano no cárcere, por crimes que não cometeram, vivenciando todas as mazelas do nosso sistema prisional”, ressalta.
Conforme a parlamentar, o estado do Rio é um dos poucos da Federação que vive uma epidemia de tuberculose, doença que mundialmente está controlada ou erradicada.
“Mas devido às condições de ausência de iluminação, ausência de ventilação nas celas, superlotação, é uma doença comum. Bem como carrapatos, ausência de lugares pra dormir. As histórias contadas por cada um desses homens elas nos devastam e nos fazem questionar a nossa humanidade enquanto sociedade”.
A coordenadora de Defesa Criminal da Defensoria Pública do Estado, Lucia Helena Oliveira, diz que a apresentação de uma única foto para a vítima, assim como a exibição das imagens em telas de celulares ou com baixa resolução são alguns dos problemas relacionados ao método.
“Em verdade, essas formas de utilização das imagens não podem ser identificadas como métodos legais para realização do reconhecimento. É importante que haja observância das regras processuais penais, como forma de garantia de direitos. Mas, a legislação ainda precisa avançar. Precisamos, por exemplo, de regras mais transparentes sobre as imagens a serem mostradas para reconhecimento, como forma de garantia mínima de direitos”, afirma.
Relatório
O relatório “Reconhecimento Fotográfico nos Processos Criminais no Rio de Janeiro” pesquisou casos julgados pela Justiça do Rio entre os meses janeiro e junho de 2021 e levantou processos em 32 comarcas do estado.
No total, segundo a Defensoria Pública, foram analisados 242 processos, envolvendo 342 réus que se relacionam com o tema. Quase metade (47, 93%) dos processos tramitaram originalmente na capital fluminense.
A seleção de casos para a formulação do estudo foi feita através de mapeamento realizado com base em ocorrências referentes ao reconhecimento fotográfico em segunda instância na Justiça.
A partir da identificação dos casos em segunda instância, foram consultados os processos em primeira. Para a análise qualitativa, foram destacadas as razões de indeferimento da prisão preventiva e, também, dos casos em que há sentença absolutória.
O relatório também destaca as razões de indeferimento da prisão preventiva e, também, dos casos em que há absolvição dos acusados, além do motivo da absolvição. Na maioria dos processos analisados (88,84%), a acusação era de crime de roubo. Os réus foram mantidos presos provisoriamente em 83,91% dos casos.
Matéria publicada originalmente no ENFOCO Site de notícias. Imagem: Agência Brasil
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