Como o Direito pode ser um aliado da luta antirracista?
“Para defender pessoas negras, temos que, antes mesmo de nos ater à discussão processual, focar em humanizar aquele corpo, individualizar aquela pessoa”, destaca o Instituto de Defesa da População Negra
“A justiça é o direito do mais fraco”. A frase, do pensador francês Joseph Joubert, nem sempre reflete a realidade, ainda mais quando se trata de Brasil, país que possui uma taxa de 40% de pessoas presas injustamente, que aguardam julgamento para serem inocentados, de acordo com o Conselho Nacional das Defensoras e Defensores Públicos-Gerais (Condege). O perfil desses presos é majoritariamente composto por jovens negros, que representam 83% dos casos.
Diante desse cenário, se faz necessário que o direito seja uma ferramenta aliada à luta antirracista para minimizar as desigualdades raciais no campo jurídico, afinal, quem mais busca defesa pública é justamente a população negra e periférica, de acordo com Defensoria Pública de São Paulo.
O órgão explica que o perfil socioeconômico dos usuários dos serviços da Defensoria Pública é de pessoas que tenham, em regra, renda não superior a três salários mínimos por mês. Quanto ao perfil racial, a Defensoria Pública atende mais pessoas autodeclaradas pretas e pardas, em comparação às brancas e amarelas.
“Tomando por base os dados que ainda serão oficialmente publicados pela Ouvidoria-Geral, coletados em entrevistas feitas por telefone entre os meses de fevereiro e março de 2022, estima-se que a Defensoria Pública atende 1% de pessoas autodeclaradas amarelas, 43% brancas, 39% pardas e 16% pretas. Não foram computados dados relativos a etnias indígenas”, afirma.
Herança histórica
A desigualdade no Brasil é histórica e sistêmica e tem na população negra sua maior vítima. Ainda que correspondam a pouco mais da metade da população (56%), são a maioria das pessoas assassinadas (78%), das vítimas de latrocínio (64%) e de feminicídio (61,8%), segundo o Fórum Brasileiro de Segurança Pública.
Todavia, o povo preto brasileiro está sobrerrepresentado no sistema penitenciário nacional, dado que 66% das pessoas encarceradas são negras, de acordo com o Departamento Penitenciário Nacional (Depen) – número que pode ser ainda maior, pois não há dados sobre raça e cor de mais de 20% desta população.
“O racismo estrutural e as desigualdades exigem respostas em todas as esferas da sociedade, o que inclui a justiça criminal e o Direito. O judiciário tem, portanto, um papel fundamental na promoção da equidade e no enfrentamento destas questões, assegurando a plena aplicação das diretivas constitucionais”, aponta o coordenador do Departamento de Monitoramento e Fiscalização do Sistema Carcerário e de Execução de Medidas Socioeducativas (DMF) do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), Luís Lanfredi, em nota enviada ao CNJ.
Na obra Racismo, Sexismo e Desigualdade no Brasil, a filósofa brasileira Sueli Carneiro pontua que a naturalização da desigualdade de direitos está ligada ao período de escravização no Brasil e à abolição “inconclusa”. O resultado desse processo, segundo ela, criou políticas de exclusão, obstáculos para o acesso da população negra à educação formal, ao mercado de trabalho e à participação política.
“Como é sabido, o Brasil foi o último país do mundo a abolir o sistema escravocrata, estrutura essa que, combinada com a ausência de políticas públicas de inclusão de pessoas negras à sociedade ou ainda medidas de reparação histórica, é uma das principais causas das desigualdades sociais sofridas pelos negros e negras, que são maioria entre a população que vive em situação de extrema pobreza”, avalia Caroline Ramos, vice-presidente da Comissão Permanente de Igualdade Racial da OAB-SP.
A advogada salienta ainda que o sistema escravocrata e o respectivo processo de abolição foram instituídos e regulamentados pelo Estado, o que não o exime de responsabilidade com esse grupo.
“Da mesma forma, são diversas as políticas públicas existentes que também são regidas pela legislação e amplamente discutidas no Poder Judiciário, de forma que a atuação jurídica se mostra necessária em qualquer área do Direito, por meio da qual se possa alcançar a equidade de direitos, historicamente negada à população negra”, completa a vice-presidente.
“Defender uma pessoa negra é muitíssimo difícil”
Para o Instituto de Defesa da População Negra (IDPN), representado pelos advogados Marcela Cardoso, Monalisa Castro e Ítalo Lima, o Direito tem um imenso potencial contra-hegemônico, quando utilizado estrategicamente pelos movimentos sociais em suas pautas.
“No arcabouço do ordenamento jurídico temos diversas lacunas que podem ser preenchidas por interpretação axiológica dos princípios constitucionais, tratados e convenções internacionais os quais foram ratificados pelo Brasil”, afirmaram os representantes do IDPN.
O Instituto acredita que, a partir da compreensão de que o Direito serve como um instrumento de manutenção das hierarquias de raça, gênero e classe, essa mesma ferramenta tem o dever de questionar, levantar contradições e utilizar as próprias lacunas do poder, principalmente para a defesa da população negra e periférica.
“Em uma sociedade de hierarquização racial, onde a escola positivista está enraizada dentro do judiciário, de nossas polícias, instituições e sociedade, e que leva a enxergar as pessoas negras como potenciais criminosos, perigosos, pessoas propensas a reincidir, defender uma pessoa negra é muitíssimo difícil, pois o julgador já está predisposto e efetivamente convencido da culpabilidade do réu, de um olhar que o desumaniza”, ressalta o Instituto.
“Para defender pessoas brancas temos que nos focar no fato, ao caso especificamente, e suas consequências jurídicas. No entanto, para pessoas negras, temos que, antes mesmo de nos ater à discussão processual, focar em humanizar aquele corpo, individualizar aquela pessoa, para além da pré-concepção do julgador, imbuída do racismo”, complementa.
Advogados negros não estão isentos da desigualdade racial
“É evidente que advogadas e advogados negros sofrem racismo diariamente. Toda esta estrutura impede que a sociedade olhe para um advogado negro como qualquer outro profissional capaz de exercer a profissão com a qualidade esperada”, salienta o IDPN.
Dados publicados no site Conjur (Consultor Jurídico) e levantados pelo Centro de Estudos das Relações de Trabalho e Desigualdades (Ceert) apontam que apenas 1% dos advogados que trabalham nos grandes escritórios de advocacia do Brasil são negros.
Para o jurista Danilo Costa, idealizador da plataforma Pretos no Direito – voltada à divulgação de vagas de emprego para profissionais negros –, na era atual da diversidade, alguns dos grandes escritórios utilizam o “selo de inclusão”, a fim de cumprir uma cota de contratação de pessoas negras e evitar críticas.
“Somos lidos como a representação da diversidade, a cota, como quiser chamar. A realidade é que isso, de certa forma, aos poucos vai mudando a cor predominantemente dos locais de trabalho, mas a luta machuca, cansa”, desabafa.
“Temos sempre que olhar o copo meio cheio. A formação em Direito não muda a cor da pele, o preto sempre vai ser preto. O racismo chega de forma velada tanto do empregador quanto do cliente. Sempre temos que nos provar mais do que outros profissionais”, completa Danilo Costa.
O advogado acrescenta ainda que para alguns escritórios e empresas, é necessário rever o esquema de contratação, pois – segundo ele – algumas exigências de processos seletivos servem para excluir pessoas negras.
“Por muitas vezes, exigem na seleção candidatos de universidades específicas, algumas especializações ou ainda fluência em outras línguas, sendo que tais requisitos não são para o trabalho a ser desempenhado e, sim, para cortar candidatos que não atendem ao ‘padrão’ do escritório”.
O Instituto de Defesa da População Negra aponta ainda que a falta de representatividade negra em grandes escritórios de advocacia evidencia a desigualdade socioeconômica e racial também no mundo do Direito.
“Neste caso, fica evidente o racismo institucional: o modo como as instituições se organizam e atuam e a adoção de determinadas práticas contribui para o aumento das desvantagens que afetam significativamente grupos raciais socialmente marginalizados. Assim, todas as instituições acabam por reproduzir esta relação de poder e subjulgam pessoas negras”, explica o IDPN.
Dos 61 cargos de liderança da Defensoria Pública do Estado de São Paulo, por exemplo, 28 são ocupados por pessoas do gênero feminino e 33 do gênero masculino. No caso do gênero feminino – quanto à etnia/raça/cor – uma profissional se declarou amarela, 25 brancas, nenhuma parda e duas pretas. Quanto ao masculino, nenhum se declarou amarelo, 30 brancos, dois pardos e um preto, segundo o órgão.
Ações afirmativas
Para o Instituto de Defesa da População Negra, para utilizar o Direito como aliado à luta antirracista é necessário, primeiramente, desconstruir os estereótipos dirigidos à população negra.
“Existem bons e maus profissionais, independente da cor, mas esse julgamento prévio só acontece com pessoas negras. Outro ponto importante é a conscientização de que não houve política pública para pessoas escravizadas, o que impacta ainda hoje, já que seus descendentes ainda convivem com o descaso do Estado. De maneira geral, podemos dizer que a sociedade tem ciência do ocorrido, mas falta consciência para se responsabilizar e transformar esse cenário”, comenta.
A vice-presidente da Comissão de Igualdade Racial da OAB-SP, Caroline Ramos, pontua que um dos primeiros atos da atual gestão foi a aprovação por unanimidade da Carta Compromisso, na qual foram estabelecidos objetivos a serem alcançados pela entidade. Dentre eles, está a instituição de cotas, de no mínimo 30%, que interseccionem gênero e raça e que vinculem todas as esferas da Secional, aplicáveis, dentre outros, às composições de diretorias, conselhos e direção de comissões, e às Escolas Superiores da Advocacia, entre diretorias, coordenações, corpo docente, instrutoras(es) e palestrantes.
Além disso, Caroline Ramos destaca que em 89 anos de história, a OAB-SP elegeu a primeira mulher como presidente da instituição. “Se por um lado esse dado revela o quanto ainda precisamos evoluir, por outro mostra o anseio pela mudança”, avalia a jurista. Ano passado também foi aprovada uma resolução em âmbito nacional visando estabelecer a paridade de gênero e cotas raciais nas eleições da OAB, que já teve validade para o último pleito.
“A garantia da paridade de gênero e reconhecimento do direito às cotas raciais garante a reparação e inclusão necessárias dentro de uma instituição que tem como missão a defesa dos direitos humanos e justiça social. Uma instituição com tamanha responsabilidade deve refletir internamente os valores e mudanças que pretende no sistema de justiça”, pontua a vice-presidente.
A OAB-SP comenta ainda que uma das demandas da comunidade negra era que fosse realizado o Censo da Advocacia Paulista, com referência expressa à autodeclaração de etnia de seus componentes. Entretanto, esse processo ainda não foi finalizado, de modo que ainda não é possível ter acesso a aos dados raciais.
A Defensoria Pública de São Paulo, por sua vez, afirma que a instituição conta com o Núcleo Especializado de Defesa da Diversidade e da Igualdade Racial, coordenado atualmente pelo defensor público Vinicius Conceição Silva, que elabora estudos, materiais de consulta pública gratuita e pareceres sobre perspectivas antirracistas de atuação institucional.
O órgão também adotou mecanismos de combate ao racismo dentro da instituição e prevê percentual de vagas reservadas para negros e índígenas, pelo critério da autodeclaração, bem como para pessoas com deficiência, pessoas trans e mulheres em situação de violência doméstica e familiar. O mesmo mecanismo também é adotado para o concurso público de ingresso nas carreiras da instituição.
“Do ponto de vista externo, a atuação judicial e extrajudicial da Defensoria Pública busca estar pautada pela perspectiva antirracista, conhecendo as particularidades das abordagens policiais e do Sistema de Justiça às pessoas negras, como o conhecido reconhecimento fotográfico, que é amplamente combatido por gerar elevado grau de erros oriundos da concepção racista de quem os realiza”, comenta.
O IDPN finaliza afirmando que apesar de ações afirmativas já existentes, não se pode esquecer que o Brasil é um país “fundado no racismo”. “Em razão disso, é preciso discutir a raça e o racismo em toda esfera da sociedade brasileira. Por isso destacamos a importância da efetividade das políticas afirmativas. Esse é um dos focos do IDPN, a formação de advogadas e advogados negros, auxiliando tanto na capacitação como oferecendo serviço gratuito de qualidade ao povo preto”.
Matéria publicada originalmente pelo site do Alma Preta. Imagem: I’sis Almeida/Alma Preta, com imagens adaptadas do Pixabay e Canva
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